Matéria da jornalista Alice Martins Morais, para o site Um Só Planeta, mostra a situação em que se encontra Belém para a COP-30, a ser realizada em novembro de 2025, com seus problemas e desafios para sediar um evento de porte mundial. Leia a matéria completa, abaixo:
“Quando se discute se Belém está preparada para sediar a COP30, a 30ª edição da maior conferência global sobre o clima, em 2025, um dos temas de debate é a hotelaria, que é insuficiente para a quantidade de visitantes esperados. Mas, para além disso, a falta de um teto adequado para dormir é um problema que assola muitos moradores. Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional da Região Metropolitana de Belém é de aproximadamente 63 mil domicílios.”
Um deles é Francisco Lima, que vive há 35 anos na Bacia Hidrográfica do Igarapé (rios de menor porte) Mata-Fome, no bairro Tapanã. Ele vive em uma passagem pavimentada, mas a única forma de chegar a muitas casas da comunidade é passando por pedaços de madeira que improvisam uma ponte. Muitas construções são de palafitas, construídas sobre troncos ou pilares, nas margens dos rios. Embaixo, passa o esgoto a céu aberto.
“Se chove, ficamos nervosos. Já perdi vários móveis porque alaga tudo rapidamente. Ninguém consegue sair de casa por umas três horas depois da chuva. Quando é assim, crianças faltam à escola e adultos têm que meter o pé nessa água suja para chegar ao trabalho”, denuncia.
Ele presta serviço de manutenção de eletrônica em uma feira próxima e já perdeu vários dias de trabalho por ter que decidir entre seu sustento ou correr riscos ao atravessar o igarapé, que hoje mais se assemelha a um canal. O morador complementa que as ambulâncias dificilmente entram no território pelas dificuldades de acesso.
Francisco relata que já viu fazerem o aterramento do trecho onde mora mais de 10 vezes e, mesmo assim, a situação só parece piorar. Para Myrian Cardoso, arquiteta e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), o primeiro passo para melhorar os alagamentos, um dos principais desafios de moradia na capital, é entender que o rio é um elemento natural da cidade.
“Belém é marcada por áreas de várzeas e, por muito tempo, havia a ideia de que bastava importar os modelos de outras regiões e cimentar, soterrar esses cursos d’água. Mas isso não pode ser entendido como um problema, precisamos pensar em uma ocupação que respeite o equilíbrio da relação entre o indivíduo e o meio ambiente” — Myrian Cardoso, arquiteta e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Em uma região em que chove constantemente, muitas residências são invadidas pela carência de drenagem. A professora ressalta que uma solução é se certificar do cumprimento da Lei nº 11.888/2008, que garante assistência técnica pública e gratuita para famílias com renda de até três salários mínimos.
“Existe uma cultura de autoconstruções de casas. Os moradores constroem sozinhos ou com pedreiros e há uma lógica por trás dessa ocupação. O problema é que é um processo desassistido pelo poder público, com serviço de assistência técnica, e por profissionais da Engenharia, Arquitetura e Urbanismo, que não chegam até esses espaços”, aponta Cardoso. Pensando nisso, ela coordena o projeto “Meu Endereço”, desenvolvido pela UFPA em parceria com a Secretaria de Articulação da Cidadania (Seac) do estado.
Soluções a partir da Ciência
Por meio das Usinas da Paz — complexos do Governo do Pará destinados a congregar serviços oferecidos à comunidade — moradores podem receber orientações de engenheiros, arquitetos e advogados na hora da reforma ou construção de uma casa.
“Em alguns casos, levamos uma equipe para fazer estudos técnicos daquele terreno e montamos um diagnóstico para nortear a obra”, acrescenta a professora.
A iniciativa surgiu no âmbito da faculdade de Engenharia Sanitária da UFPA, em 2019, a partir do projeto de pesquisa “Saber e conviver”, e garante orientação quanto à segurança urbanística, ambiental e fundiária, e também sobre como tornar a casa mais sustentável e resiliente às mudanças climáticas.
“Orientamos, por exemplo, sobre a importância de se pensar na ventilação, iluminação e estabilidade do solo. E ainda mostramos quais os melhores materiais de acordo com a necessidade”, explica.
Um dos mitos que a professora elenca é de que casas feitas de alvenaria são melhores.
“Na Amazônia, nem sempre isso é verdade. Muitas vezes, as casas de madeira são mais apropriadas. Pela pesquisa, identificamos que elas levam até sete anos para apresentar sinais de afundamento em áreas de várzea, que receberam aterro, enquanto as de alvenaria levam apenas três anos e meio”, revela.
Segundo Myrian Cardoso, destinar um olhar mais humanizado e multidisciplinar à questão da moradia é também uma ferramenta para construção da cultura de paz.
“Em espaços de ocupação desassistida, a propriedade pode ser motivo de conflitos entre vizinhos que param nas delegacias e tribunais de Justiça. Orientamos o morador a respeitar os limites de seu terreno e conviver em mais harmonia com o espaço do outro”, salienta a professora, que é a primeira arquiteta e urbanista certificada pelo Tribunal de Justiça do Pará como mediadora de conflitos.
172 mil pessoas vivem em áreas de risco na cidade
O levantamento mais recente (2021) elaborado pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) mapeou 125 áreas de risco na capital, sendo 76 vulneráveis à inundação e alagamentos e 49 à erosão costeira. A instituição, que é vinculada ao Ministério de Minas e Energia, calcula que 7 mil pessoas vivem em áreas de risco alto e mais de 165 mil em muito alto.
O relatório sugere intervenções como:
- a possibilidade de remover e realocar temporariamente moradores durante o período de chuvas,
- instalar um sistema de alerta para as áreas de risco
- adequar os projetos de engenharia às condições geológicas, topográficas e hidrológicas locais, que levem em consideração o efeito da maré.
“O risco é insistir em respostas fracassadas”, diz arquiteta
Diante dessa problemática, Ana Clara Fonseca, membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Pará (CAU/ PA), lamenta que os esforços do poder público não levem em consideração a urgência necessária e continuem desvalorizando o potencial da natureza.
“O risco é insistir em respostas fracassadas às condições socioambientais da cidade. É preciso pensar em políticas integradas e que envolvam as comunidades”, declara.
A arquiteta ressalta que, embora as mudanças climáticas sejam uma realidade para todos, o direito à moradia e a relação com o meio ambiente é uma complexidade que afeta populações periféricas com mais intensidade: “Existe um atravessamento racial que exige pensar em ações mitigadoras que atenuem as desigualdades vivenciadas por pessoas pretas nas periferias”.
Prédios desocupados vão ser destinados para turistas
Ana Clara Fonseca acredita que um dos caminhos para mitigar o déficit habitacional seria dar “função social em áreas urbanizadas, e garantir o acesso integrado da moradia à cidade”. “Morar não se encerra nos muros do limite de uma casa, mas a um conjunto de direitos e serviços urbanos que precisam ser garantidos e coletivamente usufruídos”, complementa.
A ocupação de imóveis hoje desocupados não está atualmente dentre as políticas públicas municipais. Por outro lado, antes mesmo de ser oficialmente confirmado que Belém seria a sede da COP30, os comitês técnico, estadual e municipal da conferência já decidiram disponibilizar sete prédios do Governo Federal para construção de hotéis. Todos eles ficam em regiões nobres da cidade.
“Tem dinheiro para a COP30, mas não tem para uma luta que batalhamos há décadas?”, questiona Francisco Lima, morador do Mata-Fome.
“Precisamos de uma reforma urbana”, pondera secretário
O engenheiro Marcio Freitas, que assumiu recentemente a Secretaria de Habitação de Belém (SEHAB), informa que a política do município se concentra em famílias com renda mensal bruta de até R$ 2.640,00, que são consideradas como faixa 1 do programa federal Minha Casa, Minha Vida.
“Na gestão passada do Governo Federal, não teve nenhuma construção de empreendimento do programa. Mas, em 2021, a Prefeitura de Belém constatou que tinha mais de 3 mil unidades habitacionais paradas há mais de 16 anos. Fizemos um esforço de reformá-las e vamos entregar até o final do ano”, promete.
Para Freitas, Belém precisa de uma “reforma urbana” — e o engenheiro afirma acreditar que a COP30 está trazendo avanços para uma política de regularização fundiária e obras de drenagem. No ano passado, foi divulgado que R$ 100 milhões de investimentos por parte do Governo Federal, no âmbito da preparação para a conferência, serão voltados para o Programa de Macrodrenagem do Mata-Fome (PROMAF), onde Francisco Lima mora e as queixas já perduram por décadas.
Esse recurso servirá como a contrapartida de U$ 15 milhões que a Prefeitura se comprometeu para o programa, junto ao Fonplata, banco de desenvolvimento formado por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. O banco, por sua vez, prevê um investimento de U$ 60 milhões, totalizando, assim, mais de U$ 75 milhões. O investimento federal é no âmbito do edital Periferia Viva, do Ministério das Cidades, e vai incluir aspectos de urbanização, como o esgotamento sanitário, segundo Laís Viggiano, arquiteta e coordenadora do PROMAF.
O contrato entre a Prefeitura e o Fonplata já foi assinado e, atualmente, está nos trâmites burocráticos para acesso ao recurso.
“Ao longo deste ano, é esperado que se realize dois processos licitatórios para contratar equipes especializadas para dar suporte à gestão do programa e produzir os estudos socioeconômicos da área, que permitirá conhecer a realidade das famílias e imóveis”, anuncia.
Para 2024, ainda estão previstas obras de requalificação de algumas vias estruturantes da Bacia do Mata-Fome.
O passo seguinte será fazer o diagnóstico das residências e oferecer uma solução para cada família, como o auxílio aluguel ou entregar uma nova unidade habitacional. Já se sabe que o terreno ao lado do Hospital Veterinário Municipal, no bairro do Tapanã, onde hoje está o canil da Guarda Municipal, será destinado a uma parte da produção habitacional.
O local fica no bairro onde se situa a Bacia do Mata-Fome. “Sempre priorizamos que a pessoa possa permanecer naquele local, se ela assim o desejar, para não quebrar os vínculos que ela tem com seu bairro e comunidade”, ressalva Viggiano.
Somente após essa etapa, inicia de fato a drenagem. O prazo para concluir toda a obra é março de 2028 (60 meses a partir de março de 2024) e a coordenadora garante que o projeto considerará as particularidades amazônicas e contará com SbN (Soluções Baseadas na Natureza).
“Essa macrodrenagem especificamente é para a renaturalização do igarapé do Mata-Fome. Não vai ser aquele revestimento de concreto que costuma acontecer nessas obras e a ponte que vai ser projetada deve permitir a navegabilidade desse rio”, destaca.




