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Deputada indígena confronta Marina Silva na CPI das Ongs: “a senhora nos abandonou”

Foto: Reprodução

A deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP) agitou a cena durante as mais de seis horas de depoimento da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ontem, 27, na CPI das Ongs. Silvia fez duras críticas à atuação da ministra. “A senhora virou as costas para nós, indígenas, nos abandonou em nome de uma agenda política”, afirmou Silvia.

Segundo Silvia, os indígenas não querem mais “ser sacrificados em nome das comunidades internacionais”. Para a deputada, se fala tanto em ancestralidade, mas é preciso dizer uma coisa muito importante: “um povo que não preserva sua ancestralidade, nem guarda a memória de seus mortos, não sabe de onde veio e nem sabe para onde vai. Nós somos obrigados a respeitar nossa ancestralidade, sabe por que? Porque nos foi negado o direito de ser igual a outra sociedade. Nos foi negado e nos é negado todos os dias “, questionou a parlamentar.

Ela continua: “Veja, eu uso óculos e estou de salto alto. Ó, como assim, uma indígena usando salto alto? Ela deve estar traindo a sua ancestralidade. Sabe, aqueles que não galgaram, que não venceram a adversidade e a diferença, só têm isso, nada mais. Eu vi indígenas se matarem por um pedaço de roupa velha, enquanto nos forçaram a não ajudá-los . Sabe por que? Porque era tradição eles se matarem. Ah, faz parte da ancestralidade o estupro coletivo? Faz parte da ancestralidade sacrificar crianças? Não, não pode fazer parte. Nós ainda continuamos em 1.500”, enfatizou Silvia Waiãpi.

Ainda de acordo com a deputada, ela”avançou para o século 21. “Essa indígena é formada em defesa química, biológica, radiológica e nuclear. Deixei de ser indígena? no meu sangue corre o sangue indígena, assim como corre o sangue em todos vocês e nem por isso vou desmerecê-los”.

Sempre se dirigindo à Marina Silva, a deputada abordou crítica feita pela ministra sobre o lema “integrar para não entregar”. “Não, zombe daqueles que tombaram para que este território fosse uma nação constituída e que hoje a senhora representa. Somos uma nação de, homens e mulheres. Integrar para não entregar significa honrar o sangue desses vultos heróicos do passado. Não podemos menosprezá-los, mas eu vou mais além. A senhora vai representar o Brasil, vai ser a chefe da grande delegação que vai representar o Brasil na COP 28. Então, a senhora vai dizer para eles que nós somos responsáveis por apenas 1% das emissões de gás carbônico na atmosfera? Eu vou parabenizar. Mas eu também quero que a senhora conte para eles a verdade, a nossa verdade, porque a sua verdade hoje não é igual à nossa, daqueles que vivem no norte brasileiro. Não, não é”.

Em outro trecho, Silvia disse que se tiver de ir à aldeia dela no Amapá, a Itapé, que fica a 8 horas de barco. E do Aramirã vai levar mais 6 horas de carro para poder chegar ao polo principal. “Avise à Europa, ministra, a todos os países no mundo, que eu faço cocô na água, porque eu não tenho saneamento, sabe? Porque eu não tenho saneamento porque nos foi imputado de que nós temos que manter a nossa cultura. Enquanto a senhora vai no banheiro fazer suas necessidades”.

O depoimento de Marina na CPI

Durante seu depoimento, Marina Silva, disse acreditar na lisura e legitimidade das organizações não governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público que receberam recursos do Fundo Amazônia e que já tiveram seus processos auditados pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Enquanto a ministra saiu em defesa do Fundo Amazônia, senadores levantaram dados que, segundo eles, colocam algumas organizações sob suspeição em relação ao uso dos recursos no cumprimento da finalidade de suas atividades na região amazônica.  O relator da CPI, senador Marcio Bittar (União-AC), apresentou dados que indicam que cinco ONGs que já prestaram depoimento na CPI captaram R$ 2,5 bilhões por meio do Fundo Amazônia em poucos anos. Ele quis saber da ministra quais projetos trouxeram resultados efetivos para a população amazônida.

” Algum trabalho em escala foi feito em benefício da população, como água potável? Há fiscalização do Ministério do Meio Ambiente em relação a esse trabalho?”, inquiriu o relator.  Marina Silva esclareceu que o Fundo Amazônia é constituído de recurso privado e atualmente soma cerca de R$ 3 bilhões. De acordo com ela, existem projetos demonstrativos e auditados pelo TCU que asseguram a legitimidade e repercussão do trabalho das entidades na região.

” É só pegar o acórdão feito pelo Tribunal de Contas quando instado a investigar o fundo, os projetos do fundo, e deu seu veredito. E deu dizendo que há lisura, o uso correto e, ainda mais, que essas organizações, com os seus projetos demonstrativos, porque não tem como ser diferente, porque R$ 3 bilhões não resolve o problema social, o problema econômico, o problema do saneamento básico do Brasil. Então os recursos do Fundo Amazônia são usados de forma transparente e podem ser auditados não só pelo acompanhamento do banco [BNDES], mas pelo Ministério Público, pela CGU, por entidades autônomas que estão a pedir auditorias, exatamente porque ele precisa ser transparente “, disse a ministra.

Na avaliação do presidente da CPI, senador Plínio Valério (PSDB-AM), além de auditorias e do trabalho do TCU, a CPI busca ir além. Ele defendeu ampliar a fiscalização do emprego desse recurso, principalmente no quesito finalidade.  “O que a gente tá querendo aqui é no final apresentar projetos de lei que permitam que o Fundo Amazônia olhe também para essa gente”.

Ele citou como exemplo relatório do próprio TCU indicando que de R$ 35,9 milhões ao Iphan, em 2022, para desenvolvimento de projetos, R$ 18,2 milhões foram direcionados a pagamento de salário e encargos sociais. A ministra esclareceu que, como conselheira honorária do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), nunca aprovou ou esteve à frente de projetos realizados pela entidade

Soberania nacional

Na opinião de Marcio Bittar, há uma contradição quando se vê que o mundo todo, há 50 anos, demonstra preocupação com a preservação da Amazônia, enquanto os estados que concentram a maior floresta tropical do mundo estão piorando seus índices de desenvolvimento. Ele ainda questionou a ministra se ela não via incompatibilidade em relação ao cargo que assume, juntamente com seu secretário-executivo, João Paulo Capobianco, por ambos terem, em algum momento da vida, histórico com ONGs ambientalistas.

— Será que os países que financiam as ONGs que atuam na Amazônia estão de fato preocupados com a questão climática ou do meio ambiente? Será que não está por trás disso um interesse econômico aviltando o interesse nacional? Por outro lado, esses recursos todos que entram no Brasil sempre com essa pegada, eles estão melhorando a vida do povo da Amazônia? Será que isso não constituiu na prática, diferente do discurso, a construção de um exército de militantes, que, entre outras coisas, se unem para lutar contra estrada, contra hidrelétrica, enfim, contra obras de infraestrutura sem as quais a Amazônia não tem como sair da pobreza? — perguntou Bittar.

Marina Silva reforçou a importância do Fundo Amazônia e o papel de relevância internacional do Brasil em se comprometer com políticas públicas que conseguiram debelar o maior vetor emissor de dióxido de carbono no país, que é o desmatamento. Isso, segundo a ministra, credencia o Brasil a chegar na Conferência das Partes (COP28) da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas na posição de cobrar medidas e recursos dos países desenvolvidos para que os serviços ecossistêmicos que equilibram o planeta continuem a existir.

” Nós evitamos lançar 133 milhões de toneladas de CO² para proteger o interesse do agronegócio, do pequeno, do grande, do médio e para que o Brasil seja a potência que ele precisa ser no século 21″, disse ela, ao informar que o atual governo tem atuado para combater o desmatamento ilegal, promover o ordenamento territorial e fundiário e promover o desenvolvimento sustentável.

A ministra ainda refutou qualquer suspeição sobre ela e seu secretário relacionada a antigas ligações com organizações não governamentais.

” O que se espera é que, uma vez no cargo público, se esteja a serviço do público, e não do privado. E existem pessoas que sabem fazer essa separação. Imagina se eu fosse alguém do setor industrial e fosse convidada para ser ministra de Indústria e Comércio, se eu iria ficar em suspeição. Absoluto. Não é assim que as coisas acontecem. Existe uma coisa chamada ética dos valores, e não ética de circunstâncias. Quem tem ética dos valores aprende a separar as coisas”.

Apoio e infraestrutura

O senador Plínio Valério exibiu vídeos de abandono e falta de assistência aos povos indígenas na Amazônia. Um deles, da cozinheira de garimpeiros Antônia Marques, denuncia o trabalho de ONGs no território ianomâmi — que, de acordo com ela, não prestam assistência na localidade. Outro vídeo indicava a dificuldade de acesso de transporte nas estradas carroçáveis (sem pavimentação), dificultando, segundo o senador, o desenvolvimento da região e até mesmo a chegada de socorro às comunidades que estão isoladas, como na  BR-364. A BR é uma rodovia diagonal que liga São Paulo ao Acre, passando por Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Rondônia, sendo fundamental para o escoamento da produção das Regiões Norte e Centro-Oeste do país.

” Vale a pena salvar a humanidade do futuro e condenando essa gente aí a morte? “, questionou o presidente da CPI.

Um terceiro vídeo mostrou representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) derrubando imóveis em territórios de conservação. Para o senador, é preciso que o estado garanta o reassentamento desses produtores que ocuparam, na visão dele, alguns territórios na esperança de obter o sustento da família. Plínio ainda transmitiu denúncias de moradores da Reserva Chico Mendes que não estão tendo acesso a direitos básicos demandados por eles, como educação e saúde.

” Não quero fazer pergunta, é só uma afirmação do que eu vi lá. O prefeito de Epitaciolândia quer construir uma escola há dois anos e não permitem. Os doentes saem em redes. E a borracha, eles extraem a R$ 3 o quilo. Tem o subsídio, que demora muito. O cara, se for macho mesmo, produz 5 quilos por dia, R$ 15. Para quem não sabe, os países asiáticos dominam a borracha, eles têm estoque para a vida inteira, portanto insistir nessa coisa de produzir borracha é muito difícil para nós. Não tem como, e todos com quem a gente conversou querem sair de lá correndo”.

De acordo com a ministra do Meio Ambiente, o custo da vida humana deve ser sempre respeitado e a vida humana deve ser sempre preservada, mas a proposta do atual governo “é não sacrificar os recursos de milhares de anos pelo lucro de poucas décadas”.

” E é possível fazer isso sem prejudicar o emprego, sem prejudicar o processo produtivo, é possível, é uma escolha, é um investimento. Dá para fazer num passe de mágica? Obviamente que não. Mas tem que encarar essa transição”.

Sobre a reserva ianomâmi, a ministra argumentou que o território, nos últimos anos, foi tomado pela atividade garimpeira, retirando daquela população o direito à subsistência por meio das suas práticas originárias. O que, segundo a ministra, vem sendo revertida pelas ações emergenciais do atual governo.  Para Marina Silva, o que não se pode permitir é que pessoas “alheias” estejam ameaçando as pessoas tradicionais.

” Esses criminosos precisam ser investigados para não permitir que a reserva seja invadida. Agora, ter ramais, ter escola, ter posto de saúde, sempre foi o sonho do Chico Mendes, e tenho certeza que é o de Vossa Excelência e de todos nós que estamos aqui”.

 

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